me perdi todas as vezes em que pensei estar a salvo
- Renata Malachias
- 29 de set. de 2020
- 2 min de leitura
Atualizado: 16 de mai. de 2022

A água está agitada.
A correnteza carrega tudo: animais grandes e pequenos, galhos, plantas, objetos e pessoas - algumas são violentamente arrastadas. Outras lutam: observo quando elas se agarram em um objeto, depois em outro, em outro... ora estão em um galho, ora em um tronco, sempre tentando chegar à beira para se salvar. Inútil. A qualquer hora, serão levadas pela tormenta, a margem não passa de uma miragem. Sei disso porque já estive ali, mas fui pega todas as vezes em que tentei me salvar. A única saída, me ensinaram, é o mergulho profundo, onde não existe luz nem movimento. Volto à superfície, às vezes, para tomar ar. Por vezes me distraio e volto a agarrar objetos. Então me lembro: só é possível sobreviver indo até o fundo.
...
Tento ser livre.
Já fui a mulher com o cabelo da revista, presa a imagens empurradas goela abaixo. Corpo domado, seguindo por linhas traçadas por outros, de posse de um passaporte (fictício) de experiências que precisavam ser vividas.
Já fui a mulher antenada, que acreditava ter escapado. Havia lido sobre isso e sabia de cor trechos inteiros de discursos alheios. Usava cabelo e citações idênticas – repetidas como mantras que me traziam a tranquilidade de quem não precisava mais se preocupar. Docilmente enganada.
...
O sistema nos engole a todos, como um monstro. Me perdi todas as vezes em que pensei estar a salvo: é mais fácil pensar sobre liberdade que vivê-la. Livres, cada escolha nos coloca à beira do precipício. Por isso a sedução de olhar para fora: dentro, o fundo parece fugir.
Aos poucos deixo de lado peles que já não me servem. Quando encontro conforto no que vejo, estou iludida pelo reflexo: uma visão difusa e agradável que oculta o monstro de dentro. Olhar para a criatura é a única possibilidade de escapar. Enfrentar a fera e voltar pelo labirinto. Percorrer o longo caminho de volta, guiada apenas por um fio, frágil e precioso. Cotidianamente: encarar o bicho e voltar. E voltar, e voltar, e voltar.
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